“O foco maior está na pessoa que tratamos”, diz presidente da Rede Sarah

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À frente da Rede Sarah e referência internacional em neurociência, Lúcia Willadino Braga é uma das idealizadoras do 1º Congresso Latino-Americano da Federação Mundial para Neurorreabilitação (WFNR), realizado em Brasília. Em entrevista ao Correio, a neurocientista, com décadas de trabalho na reabilitação de pessoas com lesão cerebral, falou da importância do evento para o Brasil. Ela destacou a relevância da cooperação internacional, da integração entre ciência e prática clínica, além da necessidade de manter um olhar humanizado, mesmo diante das mais avançadas tecnologias. 

Como nasceu a ideia de trazer o Congresso Latino-americano de Neurorreabilitação para Brasília? Qual é o significado dessa realização?

Na Rede Sarah,  temos uma cooperação com a Federação Mundial de Neurorreabilitação, que tem mais de 25 anos, desde o início da entidade. Na pandemia (de covid-19), fizemos um evento virtual para comemorar os 25 anos da federação, cuja sede na América Latina é na Rede Sarah. Aí, surgiu a ideia: por que não fazer congressos latino-americanos? Trouxemos o congresso para cá, combinamos a data e vamos passar a fazer os congressos latino-americanos com mais frequência. Um ponto importante é que Brasília, hoje, é um polo internacional de neurociências. Antes, a tendência era de os brasileiros incentivarem os filhos a estudar no exterior. Hoje, isso mudou. É muito interessante, porque vemos que, em vez de os nossos filhos irem para o exterior, os filhos dos noruegueses, suecos, americanos, franceses etc. estão vindo para aprender conosco. 

Há possibilidade de os encontros em Brasília se tornarem eventos anuais ou bienais. Para além da perspectiva de futuras realizações, qual legado esse congresso deixará para a área?

Traz um legado muito importante, não só para Brasília, para o Brasil, mas também para o mundo. Quando se juntam pensadores que produzem o conhecimento de ponta internacional, num momento de concentração e discussão, isso eleva o nível do entendimento. Estamos todos saindo daqui (do congresso) com muito mais conhecimento sobre o cérebro. Vemos cérebros de todas idades e as últimas descobertas do funcionamento cerebral por vários ângulos. Temos mais de 40 especialidades diferentes de profissionais juntos. Isso traz vários olhares distintos, riquíssimos. É um legado fazer com que a neurociência passe para um outro patamar. 

Qual a importância dessa multidisciplinaridade para o avanço da própria neurociência? 

Poder compartilhar olhares dá uma visão muito mais ampla e completa da realidade. Isso é riquíssimo para a neurociência, para o Sarah, para Brasília e para o futuro. No presente, nós temos resultados concretos de coisas que foram discutidas aqui e podem ser aplicadas. Em vez de termos que esperar o artigo ser publicado, absorvemos o conhecimento e estamos colocando em prática. O foco maior para a Rede Sarah está na pessoa que tratamos, à qual queremos ver com base em evidências científicas robustas, mas com olhar humanizado. 

Qual é o caminho realizado para que as discussões acadêmicas cheguem ao consultório?

Seguimos um caminho contrário. Em geral, aprendemos na academia e trazemos para a clínica. Aqui, lemos o que está na literatura. E é muito fácil colocar em prática o que está na literatura médica. Mas, tem muitas coisas que chegam no nosso cotidiano — ainda mais o Sarah, que atende a 2 milhões de pacientes por ano — e que não está na literatura nem tem solução. Nós pesquisamos isso. Publicamos tratamentos para coisas das quais não há nada publicado e a academia vai usar o que nasceu de um olhar na vida prática. 

Considerando que a neuroplasticidade é um tema central da neurorreabilitação, quais descobertas recentes têm transformado a forma como a medicina encara esse conceito?

Sabemos que a neurorreabilitação provoca melhoras importantes no indivíduo. Então, o que veio de novo? Tecnologia em neuroimagem, que nos permite ver o funcionamento cerebral. Por exemplo, quando a pessoa não tinha alguma aprendizagem, o cérebro não tinha ativação em várias áreas. Na hora em que a pessoa aprende, podemos detectar a formação de uma rede neuronal nova, e não só isso, mas mudanças na substância cinzenta e na conexão entre os neurônios. Outro dado muito importante é com relação ao etarismo. Se por um lado é fato que acontecem mais doenças que atingem o cérebro a partir de uma certa idade, o cérebro saudável continua sempre melhorando.

Algumas das palestras destacaram o crescente papel da inteligência artificial e das tecnologias digitais na recuperação dos pacientes. Diante dessa perspectiva, como a senhora visualiza a integração dessas tecnologias no atendimento humanizado?

Nós não podemos fechar os olhos para o nosso tempo nem para as coisas que acontecem na sociedade e na natureza. No Sarah do Lago Norte, por exemplo, temos todo um laboratório trabalhando com realidade virtual, trabalhando com inteligência artificial. Ao mesmo tempo, pacientes remando no lago. É uma tecnologia também, um barco, um remo, smart labs que são laboratórios nos quais o paciente tem contato com a realidade virtual. Isso é um instrumento maravilhoso. A pessoa faz (as atividades) de uma forma lúdica. O importante é ter todos os elementos da tecnologia e da natureza dando as mãos e ajudando nessa parceria, para melhoria das pessoas e da qualidade de vida. 

Algumas iniciativas exploram a implantação de dispositivos como chips para potencializar a recuperação e até mesmo aprimorar o desempenho neural. Essas aplicações ainda se restringem ao âmbito da ficção científica ou vislumbram alguma aplicação prática?

Aqui, na Rede Sarah e em outros lugares no Brasil e no mundo, numa pessoa com Parkinson, podemos implantar um eletrodo, e os tremores e movimentos involuntários desaparecem. Esse tipo de intervenção é maravilhosa. Temos resultados bem práticos. São mais focais. No sentido de uma aplicação ser feita num local específico do cérebro, com eixo objetivo. Não é uma coisa que mudará tudo ao mesmo tempo. Mas temos muitos especialistas estudando tecnologias que podem ser acopladas ao corpo ou que, realmente, são implantadas. A tecnologia sempre vai contribuir, mas ela nunca vai substituir o homem, quando se trata de um ser humano cuidar de outro ser humano. 

A senhora é uma referência internacional na área. O que a motiva, após tantos anos de dedicação, a seguir pesquisando e atendendo a pacientes com uma combinação de olhar humanizado e visão de futuro?

O que me move é a curiosidade, o interesse pela pesquisa, para conhecer uma coisa que não é conhecida. A ciência não mostra nada que não exista. Só que muito do que existe ainda não enxergamos. O pesquisador investiga e mostra que há algo lá. Isso move profundamente uma pessoa curiosa, um pesquisador. E essa interação com os pacientes nos dá ainda mais energia. Nessas doenças que nós tratamos, como as lesões cerebrais e medulares, a pessoa é acompanhada a vida toda. Mostrei um caso que estou acompanhando há 24 anos. São pessoas amigas, com as quais temos uma relação afetiva. É muito bom tê-los conosco. O paciente cresce e o profissional também. É uma parceria muito bonita.

Por Carlos Silva do Correio Braziliense

Foto: Bruna Gaston CB/DA Press / Reprodução Correio Braziliense

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